recente criação de uma lei nos Estados Unidos destinada a proteger dados cerebrais de consumidores representa um marco importante na regulamentação de tecnologias que se conectam diretamente com a mente humana. O aumento no uso de “dados neurais”, informações obtidas a partir da atividade cerebral e de outros sinais nervosos do corpo, motivou as autoridades americanas a estabelecerem limites claros para o que empresas de tecnologia podem coletar e compartilhar. Com a nova legislação, os consumidores têm o direito de acessar, modificar e até restringir o uso de seus dados neurais, e também proibir a venda ou a transferência dessas informações para terceiros. A medida busca garantir que o uso dessas tecnologias ocorra de forma transparente e respeite a privacidade, em um momento em que avanços tecnológicos em interfaces cérebro-máquina começam a expandir as fronteiras do que é possível.
Dispositivos médicos e controle de robôs com o pensamento
Hoje, produtos e serviços que monitoram e registram a atividade cerebral já existem e estão em uso, desde dispositivos médicos que ajudam na reabilitação de pacientes até interfaces que permitem o controle de robôs com o pensamento. Entretanto, até a criação da nova lei, não havia regulamentação específica para neurotecnologias fora do escopo dos dispositivos médicos tradicionais, o que gerava incertezas sobre a proteção dos dados gerados por essas ferramentas. Dispositivos como os de controle mental de robôs pela Universidade de Tecnologia de Sydney (UTS) são exemplos de inovações que podem ser beneficiadas por essa nova legislação, ao mesmo tempo que colocam em pauta novos desafios regulatórios.
Controle mental de robô demonstrou precisão de 94%
A pesquisa realizada na UTS desenvolveu uma interface cérebro-máquina que traduz sinais cerebrais em comandos diretos para robôs, permitindo a operação dessas máquinas apenas com a atividade mental de um usuário. Em uma demonstração recente, militares do Exército Australiano conseguiram controlar um robô quadrúpede com uma precisão de 94%, mostrando que essa tecnologia está cada vez mais próxima de aplicações práticas fora dos laboratórios. Além de representar um avanço para o setor de defesa, essa inovação abre espaço para usos na medicina, como em tratamentos de reabilitação para pacientes com limitações motoras, e até mesmo no entretenimento, oferecendo novas formas de interação com o ambiente digital.
Cérebro artificial que controla robô
Simultaneamente, cientistas na China avançam em outra fronteira do controle mental de dispositivos, com a criação de um robô operado por meio de um sistema que utiliza células cerebrais humanas cultivadas em laboratório. Ou seja, é um robô controlado por um cérebro artificial. Chamado de "brain-on-a-chip", o projeto da Universidade de Tianjin usa células-tronco para formar uma estrutura que simula um cérebro humano em um chip, capaz de interagir com sinais elétricos e transmitir comandos para um robô. Essa tecnologia, que mistura elementos biológicos e digitais, expande o campo da biocomputação, apresentando possibilidades em áreas como a reabilitação neurológica e o desenvolvimento de inteligências híbridas, que combinam o melhor de sistemas biológicos e robóticos.
Biocomputação suscita desafios éticos que requerem debates sobre a regulamentação global, não sobre freio evolutivo
É importante destacar que todas essas inovações trazem consigo uma série de desafios éticos e práticos. O uso de células cerebrais humanas em experimentos desperta preocupações sobre os limites da pesquisa científica. A ideia de que tecidos cerebrais cultivados possam desenvolver algum grau de percepção ou consciência, ainda que em um nível rudimentar, levanta questões sobre os direitos desses materiais biológicos e a responsabilidade de seus criadores. Além disso, à medida que a consciência pública sobre essas tecnologias cresce, é provável que o debate sobre seus usos e implicações ganhe cada vez mais espaço, especialmente no que diz respeito à privacidade dos dados cerebrais. No entanto, o debate em torno dessas questões não deve frear a evolução da biocomputação, mas discutir a regulamentação global.
Pensamentos e sentimentos podem se tornar os próximos itens seguráveis
Todos esses movimentos de evolução na biocomputação revelam possibilidades para a criação de seguros para dados neurais. Assim como seguros de vida, de saúde e de dispositivos eletrônicos, uma nova classe de seguros poderia cobrir os riscos associados ao uso e à proteção de dados gerados pela atividade cerebral. Por exemplo, um seguro poderia oferecer cobertura contra o vazamento de informações mentais sensíveis ou garantir proteção jurídica em caso de uso inadequado de dados por parte das empresas. No caso de implantes cerebrais para controle de dispositivos, esses seguros poderiam cobrir danos em caso de falha do sistema que resultasse em acidentes ou prejuízos ao usuário.
A complexidade da tecnologia e a quantidade de dados pessoais envolvidos criam uma necessidade nova de proteção
As aplicações para seguros nesse novo contexto não se limitam apenas ao uso individual. Empresas que desenvolvem e utilizam essas tecnologias também podem encontrar novas demandas de cobertura. Instituições médicas que implementem tecnologias de interface cérebro-máquina em tratamentos de reabilitação, ou mesmo empresas de entretenimento que ofereçam experiências controladas mentalmente, poderiam recorrer a seguros que cobrissem riscos operacionais, além de responsabilidades associadas ao armazenamento e processamento de dados neurais de clientes. A complexidade da tecnologia e a quantidade de dados pessoais envolvidos criam uma necessidade de proteção que é nova e ainda não completamente endereçada pelas estruturas de seguro tradicionais.
“Black Mirror” nunca foi tão real
Em um artigo no portal do INTERNETLAB, um centro de pesquisa interdisciplinar que promove a produção de conhecimento e tem o apoio de gigantes tecnológicas como a Meta, o Google e entidades acadêmicas de referência como a Columbia University e a USP, as autoras levantam reflexões a partir da série Black Mirror, especificamente do episódio "Toda a sua história", em que as memórias humanas são digitalizadas e podem ser acessadas a qualquer momento. Elas afirmam: “De antemão, parece interessante esta nova relação que a era digital vem construindo com o acúmulo de memórias. Por mais que a habilidade em retomar o passado aparente trazer conforto, há certas consequências envolvidas na mudança do paradigma humano com relação ao esquecimento e à lembrança. Esta mudança vem fazendo cada vez mais parte da realidade de todos nós, com o advento de uma série de tecnologias digitais que permitem que tudo seja guardado – existe um esforço e uma afeição cada vez maior pelo ato de recordar as coisas, seja nas ações de filmar, fotografar ou se manifestar em redes sociais.”
A proteção dos pensamentos e sentimentos levanta questões que vão além da esfera comercial
Partindo desse mesmo episódio da série mencionada, é possível traçar um paralelo com os riscos atuais: a possibilidade de que vivências e pensamentos sejam armazenados, manipulados ou comercializados por meio dessas novas tecnologias torna essencial a discussão sobre os limites e as responsabilidades envolvidas. Assim, apesar de a criação dessa nova lei para a proteção de dados neurais nos EUA abrir um caminho importante para a regulamentação e para novas oportunidades de seguros em um mercado em expansão, a proteção dos pensamentos e sentimentos levanta questões que vão além da esfera comercial, tocando em aspectos fundamentais sobre a privacidade e a autonomia dos indivíduos em relação às suas próprias mentes.
Desafio que transcende o campo da tecnologia e toca o âmago da experiência humana
Dessa maneira, ao pensar nas consequências desses avanços, surgem questões sobre o que significa perder a capacidade de controlar nossas próprias memórias e pensamentos e até que ponto isso afeta a autonomia individual. A regulamentação e a oferta de seguros especializados podem fornecer um amparo legal e financeiro, mas não são capazes de resolver todas as implicações éticas e sociais de uma era em que as fronteiras entre a mente e os dados são cada vez mais difíceis de distinguir. Assim, enquanto a legislação e as oportunidades de mercado se ajustam a essa nova realidade, permanece a necessidade de refletir sobre os impactos de longo prazo de tecnologias que transformam a relação entre o humano e o digital, um desafio que transcende o campo da tecnologia e toca o âmago da experiência humana.