uso de dados alternativos na análise de riscos já é prática corrente em segmentos específicos do mercado. Informações derivadas de mobilidade urbana, de hábitos financeiros, de padrões de consumo e de comportamento online começaram a ser incorporadas na estruturação de produtos de seguro. A movimentação não se dá apenas no ajuste fino de subscrição, mas na transformação silenciosa do próprio conceito de proteção. Seguradoras que atuam com modelos de "pay-how-you-drive" no automóvel, empresas de saúde suplementar que modulam benefícios conforme índices registrados por dispositivos vestíveis, startups que exploram o comportamento de compra para embasar seguros massificados são sinais claros de que o mercado já opera, na prática, em bases que extrapolam os dados tradicionais.
A personalização baseada em dados digitais avançou sobre a fase de subscrição tradicional
A questão que se impõe não é mais se o comportamento digital deve ser usado como referência. Isso já acontece. O desafio é entender até que ponto essa personalização muda a função social do seguro, transforma a lógica de acesso à proteção e borra a fronteira entre segmentação legítima e exclusão silenciosa.
O histórico digital deixa de ser critério de avaliação e passa a ser critério de modelagem. Em produtos como auto, vida e saúde, a personalização baseada em dados digitais já avança sobre a fase de subscrição tradicional. O movimento não se limita a precificar de forma mais precisa. Em vários casos, ele define os próprios contornos das coberturas.
Modelos de seguro passam a refletir padrões de comportamento em tempo real
O exemplo mais explícito desse movimento é o dos seguros de automóvel "pay-per-mile" e "pay-how-you-drive", praticados pelo mercado brasileiro, estadunidense e em outros mercados no exterior, como a Índia. Além do preço, a estrutura da apólice é determinada conforme padrões de condução, horários de uso e tipo de trajeto. Em saúde, a adesão a programas de "wellness" monitorados, em que descontos e benefícios são modulados a partir de dados de atividade física captados por smartwatches, ilustra outra camada desse processo. Já há modelos em que a renovação do contrato e a manutenção de franquias diferenciadas dependem da continuidade dos padrões monitorados.
Mesmo em linhas menos óbvias, como seguros de vida individuais, empresas começam a considerar históricos de mobilidade, geolocalização e interações digitais para estruturar produtos sob medida, especialmente em canais de distribuição digital direta ao consumidor. Esses exemplos apontam para um futuro próximo em que o histórico digital não será mais apenas ferramenta de avaliação de risco — será insumo fundamental para a própria concepção dos produtos. E a personalização não será somente o preço: será a própria definição do que é, ou não, objeto de proteção.
Personalizar amplia a precisão, mas também muda o acesso
O discurso da personalização tende a ser associado automaticamente a ganhos de eficiência. E, de fato, o uso de dados comportamentais permite reduzir assimetrias informacionais, ajustar prêmios de forma mais justa e oferecer produtos mais adequados a diferentes perfis de risco. Mas a consequência prática dessa adaptação é mais complexa. Ao transformar o comportamento digital em critério de confecção de produto, o mercado deixa de operar com um conjunto homogêneo de ofertas para trabalhar com estruturas que selecionam quem terá acesso pleno à proteção. Assim, quem tem rotinas monitoráveis, estáveis e financeiramente previsíveis tende a ser favorecido. Quem vive fora dos padrões desejados — por escolha, por contexto socioeconômico ou por impossibilidade de conformidade — pode enfrentar barreiras silenciosas, seja no custo, seja na limitação de coberturas.
O que se personaliza, portanto, não é apenas a adequação técnica da apólice. É a fronteira entre quem é acolhido e quem é afastado pela lógica dos dados.
A lógica de proteção coletiva se enfraquece diante da segmentação extrema
O seguro sempre se sustentou em uma ideia simples: diluir incertezas de poucos na força de muitos. Essa lógica permitiu acesso universal a coberturas que, de forma isolada, seriam financeiramente inviáveis para a maioria das pessoas.
A personalização ancorada em dados digitais tensiona esse princípio. Ao afinar a análise de risco até seus limites individuais, o modelo coletivo se fragiliza. A mutualização perde força, substituída por uma lógica de performance e rastreabilidade. O impacto dessa mudança é uma mudança silenciosa do papel social do seguro. À medida que o risco passa a ser individualizado de forma extrema, cresce o risco de o acesso à proteção depender cada vez mais da capacidade de conformar-se a padrões monitoráveis.
O seguro deixa de ser um pacto entre diferentes para se tornar um reflexo das práticas captadas em tempo real — práticas que nem sempre são negociáveis ou alteráveis pelos indivíduos.
A capacidade de regular não acompanha a velocidade da transformação
As tentativas de regulação para proteger dados pessoais são recentes e, em muitos casos, reativas. A Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil, inspirada em marcos europeus, estabelece limites importantes sobre coleta, armazenamento e uso de informações. Mas os desafios trazidos pelo uso intensivo de dados alternativos vão além do que a legislação atual consegue controlar. Quando o perfil comportamental passa a ser capturado, interpretado e transformado em critério de elegibilidade de seguros, surgem zonas de incerteza que extrapolam as fronteiras da regulação tradicional.
O consumidor raramente tem acesso aos algoritmos que processam seus dados. Pouco sabe sobre como seu comportamento é pesado, o que é considerado risco e o que é interpretado como vantagem. Em muitos casos, nem mesmo a seguradora domina integralmente os filtros aplicados por sistemas automatizados.
A capacidade de auditar esses processos, garantir transparência e estabelecer responsabilidade é limitada. Enquanto isso, o mercado avança, criando novas formas de proteção baseadas em dados que o próprio consumidor muitas vezes desconhece ter disponibilizado.
O que a personalização extrema preserva e o que ela deixa para trás
Não se pode ignorar os ganhos trazidos pela personalização orientada por dados. Produtos mais aderentes à realidade dos clientes, menos desperdício de capital e maior eficiência na estruturação de coberturas são avanços concretos e relevantes.
Mas a evolução também impõe perdas que não podem ser invisibilizadas. Quando a lógica da proteção se ancora em rastros digitais, a proteção deixa de ser um direito compartilhado para se tornar um privilégio monitorado. A linha entre segmentação legítima e exclusão silenciosa torna-se difícil de traçar.
O seguro, que nasceu para administrar incertezas coletivas, caminha para um modelo que administra diferenças individuais com a precisão de quem monitora — mas também com a frieza de quem seleciona. Portanto, o desafio técnico anda de mãos dadas com o político, social e ético. E todos eles devem ser colocados no centro da agenda do setor.