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lgumas cidades da China podem começar a operar táxis voadores como meio regular de transporte nos próximos três a cinco anos. A estimativa, divulgada por um dos vice-presidentes da Ehang — fabricante chinesa de veículos aéreos autônomos — acompanha a recente aprovação oficial para o início de operações comerciais com passageiros em aeronaves não tripuladas. Essa movimentação da China para autorizar os primeiros serviços comerciais com aeronaves elétricas de decolagem e pouso vertical — os chamados eVTOLs — sugere um esforço visível de tornar viável o transporte aéreo urbano em pequena escala. A Ehang obteve no fim de março a certificação necessária para operar seu modelo EH216-S em rotas curtas e pré-definidas, destinadas, num primeiro momento, ao turismo.

Trajetos iniciais terão duração estimada entre três e dez minutos por viagem

O veículo, autônomo e sem piloto a bordo, acomoda duas pessoas e opera por meio de 16 hélices elétricas. O alcance, por ora, está limitado a 30 quilômetros. Segundo informações da própria empresa, os trajetos iniciais devem ocorrer nas cidades de Guangzhou e Hefei, com duração estimada entre três e dez minutos por viagem. O projeto é conduzido em parceria com a Hefei Heyi Aviation e integra um conjunto mais amplo de iniciativas que vêm sendo agrupadas sob a noção de “economia de baixa altitude” — um campo ainda em consolidação, que envolve drones, transporte turístico aéreo e serviços logísticos realizados abaixo de mil metros de altitude.

Valor estimado para a “economia de baixa altitude” é de 205 bilhões de dólares

Esse modelo de mobilidade não é novo nas pranchetas da engenharia, mas começa agora a ganhar uma moldura regulatória no país asiático, onde o ritmo de testes e aprovações tem avançado com menos hesitação do que em outras regiões do mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Administração Federal de Aviação ainda discute a extensão das normas aplicáveis a aeronaves desse tipo, priorizando inicialmente modelos tripulados. A União Europeia segue um caminho semelhante.

Ao concentrar esforços em soluções autônomas, a China abre uma frente paralela de atuação, marcada pelo incentivo estatal e por uma agenda política que busca alavancar a atividade econômica nesse estrato do espaço aéreo. A partir de 2023, a ideia de impulsionar a “baixa altitude” passou a constar em documentos oficiais, com metas voltadas ao turismo aéreo, esportes e uso de drones civis. O valor estimado para esse mercado até 2025 é da ordem de 1,5 trilhão de yuans (cerca de 205 bilhões de dólares).

Um voo sem piloto, mas não sem riscos

Embora esse avanço tecnológico seja um salto na engenharia de transportes, as perguntas que orbitam esse novo tipo de operação estão longe de serem respondidas com a leveza das promessas promocionais. Parte das dúvidas diz respeito à própria arquitetura dos veículos. A ausência de piloto — tida como inovação — implica também a ausência de decisões humanas em tempo real diante de falhas, imprevistos climáticos ou interferências externas. Ao contrário de aeronaves tradicionais, que contam com margem de reação por parte de comandantes experientes, os eVTOLs são integralmente dependentes de algoritmos e sensores. Não possuem mecanismos de voo planado nem paraquedas de emergência. Um colapso elétrico em pleno voo reduz a margem de resposta a segundos.

Como evitar que um táxi voador seja convertido em arma de ataque ou se torne parte de uma falha sistêmica?

Além das falhas técnicas, surge o debate sobre segurança digital. Aeronaves autônomas são, por definição, sistemas conectados — e, portanto, suscetíveis a invasões. A possibilidade de um veículo ser assumido por terceiros mal-intencionados não é uma hipótese distante, mas uma questão prática de segurança cibernética. Como evitar que um táxi voador seja convertido em arma de ataque ou se torne parte de uma falha sistêmica?

eVTOLs levantam debate público sobre a segurança desses veículos

Esse conjunto de riscos encontra eco em debates informais que circulam fora da agenda institucional. Em uma discussão na rede social Reddit, usuários anônimos pontuam, com ironia e inquietação, os principais temores relacionados à novidade. “Legal, até a hora em que falhar e cair em cima de uma multidão”, escreveu um internauta. Outro levanta a hipótese de colisões com aves, mudanças repentinas no clima ou interferência eletromagnética. “Não tem como planar em emergência. E ninguém ali vai saber o que fazer. É apavorante.” Há também críticas mais técnicas. “São só helicópteros chiques. Tudo o que esses veículos fazem, um helicóptero já faz — e com muito mais autonomia e alcance.” 

Além da sobreposição funcional, os comentários apontam para limitações estruturais: barulho excessivo, poluição visual, dependência de infraestrutura de pouso e rotas pré-definidas. “Já vi engenheiros de aviação dizendo que esses veículos são basicamente lixo tecnológico com marketing bonito”, desabafa outro usuário.

A adesão da população passa pela percepção pública do risco

Os relatos mencionados acima, embora espontâneos e anônimos, lançam luz sobre uma camada essencial do debate: a percepção pública do risco. A adesão da população não depende apenas de certificações técnicas, mas da confiança cultural e emocional que se constrói — ou não — em torno da ideia de embarcar em um veículo sem piloto, sobrevoando áreas densamente povoadas.

A complexidade do risco que envolve os eVTOLs exigirá novas modalidades de cobertura

No Brasil, qualquer operação aérea — seja comercial, particular ou experimental — está sujeita a uma exigência básica: o seguro RETA. Trata-se da Responsabilidade Civil do Explorador ou Transportador Aéreo, cobertura obrigatória por força do Código Brasileiro de Aeronáutica. O RETA protege contra danos causados a passageiros, tripulantes, terceiros no solo e objetos atingidos por eventuais acidentes. Os valores são tabelados e atualizados anualmente, funcionando como uma base mínima de responsabilidade. No entanto, diante da chegada de eVTOLs, esse tipo de seguro não seria suficiente. A complexidade do risco envolvido exigiria novas modalidades de cobertura, capazes de lidar com situações novas na aviação: falhas de software, ataques cibernéticos, pane simultânea de múltiplos veículos ou acidentes com múltiplos impactos urbanos (queda em áreas densas, colisão entre unidades, falhas em série de um mesmo modelo). Tem também a questão da atribuição de responsabilidades. Quem responde legalmente em caso de queda de uma aeronave autônoma? O fabricante, a operadora, o programador do algoritmo, a cidade que autorizou o voo? A ausência de um condutor humano embaralha o conceito de culpa — eixo central da precificação dos seguros de responsabilidade civil.

Novos riscos exigem novas coberturas

O setor segurador, portanto, se vê diante de um desafio duplo: acompanhar a evolução tecnológica sem assumir riscos incalculáveis e desenvolver soluções que respondam aos novos perigos e também incentivem boas práticas operacionais. Coberturas para danos emergentes, sinistros não convencionais e interrupções sistêmicas precisarão ser desenhadas quase do zero. Isso inclui a precificação de seguros para passageiros, operadores, fabricantes e até municípios que sediam esses voos. Será preciso criar modelos atuariais para riscos não precedentes — riscos que ainda não ocorreram, mas já exigem prevenção. 

O Brasil pode concentrar até 30% do mercado global desses veículos até 2030

Essa necessidade de ampliação de segurança já vem sendo reconhecida em outras frentes, inclusive no Brasil. A Eve Air Mobility, subsidiária da Embraer dedicada ao desenvolvimento de eVTOLs, prevê iniciar operações comerciais ainda nesta década, com cerca de três mil aeronaves já encomendadas. A empresa estima que o Brasil possa concentrar até 30% do mercado global desses veículos até 2030. Isso traz para o campo nacional a urgência de uma adaptação jurídica e atuarial — sobretudo no que diz respeito à definição de responsabilidade, licenciamento de operadores e delimitação de zonas de pouso. Afinal, a introdução de veículos autônomos no espaço urbano transforma a lógica da segurança como um fenômeno coletivo e distribuído. Não se trata apenas de proteger quem voa, mas de prever e mitigar os efeitos sobre quem está no solo, em casa, no trânsito ou no trabalho. 

O tempo da inovação e o tempo da regulação

A velocidade com que a China vem implementando os eVTOLs pode sugerir um avanço irreversível. Mas, como mostrou a própria experiência com os carros autônomos, há um fosso entre o protótipo e a vida real. A diferença agora é que esse fosso não está no asfalto, mas no ar — e seus acidentes, caso ocorram, terão impacto tridimensional. A mobilidade aérea urbana não é um voo solo da engenharia, ela depende de um conjunto de regulamentações, seguros, infraestrutura urbana, percepção pública e maturidade operacional. Avançar nesse campo exige mais do que drones certificados. Exige vigilância crítica sobre o que está sendo prometido — e, mais que isso, sobre o que ainda não se sabe.

Postado em
11/4/2025
 na categoria
Inovação

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