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aumento de notificações, reuniões remotas, mensagens instantâneas e jornadas de trabalho sem fronteiras geográficas tem imposto um novo ritmo à experiência digital. A promessa de produtividade foi acompanhada por uma presença constante de estímulos que raramente oferecem pausa. Nesse contexto, os registros de sinistros e os afastamentos por motivos psicológicos vêm se configurando como indicadores que auxiliam na compreensão dos efeitos prolongados da hiperconectividade.

13% da população mundial convive com algum tipo de transtorno mental

Dados divulgados pelo Senado Federal apontam que cerca de 13% da população mundial convive com algum tipo de transtorno mental — aproximadamente uma em cada oito pessoas. Desses casos, estima-se que 60% sejam atribuídos à ansiedade e à depressão, os dois diagnósticos mais recorrentes nesse campo. A relevância do tema ultrapassa os limites individuais, atingindo redes familiares, dinâmicas sociais e até o desempenho de setores econômicos, como o de seguros, que já enfrentam os desdobramentos práticos do adoecimento mental em sua operação.

Brasil tem maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos

Por meio de diversos estudos, é possível identificar um acréscimo na incidência de diagnósticos ligados a transtornos mentais e o impacto para as operadoras de saúde a longo prazo. Um desses estudos intitulado como “Janeiro Branco na Saúde Suplementar – Panorama da saúde mental entre beneficiários de planos de saúde”, apontou que o número de beneficiários de planos de saúde com depressão aumentou de 11,1% para 13,5% de 2020 para 2023; e que os custos com procedimentos em psicoterapia passaram, entre 2018 e 2022, de R$ 181 milhões para R$ 269 milhões. 

Outro estudo do do Ministério da Previdência Social divulgado pelo G1, apontou para uma crise de saúde mental no Brasil: em 2024 o país registrou mais de 470 mil afastamentos do trabalho por transtornos mentais. Foram quase meio milhão de afastamentos, o maior número em pelo menos dez anos.Na comparação com o ano anterior, as 472.328 licenças médicas concedidas representam um aumento de 68%.

Saúde mental é um desafio para as seguradoras

Para as empresas do setor, incluir a saúde mental no portfólio de produtos envolve a complexa tarefa de avaliar riscos, gerenciar custos e estruturar ações preventivas. Os transtornos psicológicos apresentam uma variabilidade na gravidade e podem ser imprevisíveis, o que complica a previsão de despesas e a criação de modelos precisos para a mensuração dos riscos. Além disso, os estigmas sociais ainda presentes podem resultar em subnotificação, tornando as análises ainda mais desafiadoras. Soma-se a isso o fato de que os tratamentos para saúde mental geralmente demandam terapias prolongadas e, por vezes, medicamentos com alto custo, elevando, assim, os encargos financeiros para as seguradoras.

As consequências desse quadro também se manifestam no cotidiano de trabalhadores e empresas. Afastamentos, queda na produtividade e aumento das despesas com saúde são efeitos tangíveis que afetam diretamente o desempenho econômico. Em situações mais graves, o suicídio — considerado uma das expressões mais extremas do sofrimento psíquico — responde por mais de uma em cada cem mortes no mundo.

Relatório da OMS aponta recorte geracional na incidência de transtornos

Ao examinar os dados de alguns estudos, é possível identificar padrões que extrapolam os números brutos. Perfis específicos, como faixas etárias de maior exposição ou profissões sujeitas a intensas demandas cognitivas, tendem a constatar-se com maior frequência nos registros de afastamentos ligados ao esgotamento. Um relatório da Organização Mundial da Saúde revela que a ansiedade tem maior prevalência entre os mais jovens, cujas rotinas são marcadas por pressões sociais e instabilidade profissional. Já a depressão tende a afetar com mais intensidade indivíduos mais velhos, muitas vezes impactados pelo isolamento social ou pela perda de vínculos afetivos. Esses recortes geracionais reforçam a importância de abordagens específicas para cada fase da vida.

Modelo de vida hiperconectado afeta cada geração de maneira diferente

Esse recorte por faixa etária também permite observar a forma como o modelo de vida hiperconectado afeta gerações de maneira diferenciada. Entre os jovens adultos, especialmente aqueles nascidos entre meados da década de 1990 e o início dos anos 2010 — a chamada geração Z —, os indicadores de esgotamento têm se intensificado de maneira precoce. Uma pesquisa da Cigna, divulgada pela Forbes, apontou que 91% dos trabalhadores desse grupo relataram níveis elevados de estresse, e 98% apresentaram sinais de burnout. Tais números não expressam apenas uma tendência pontual, mas um processo de exaustão que vem se tornando recorrente.

Motivos para o esgotamento da geração Z

A matéria da Forbes mencionada acima também elencou alguns motivos que levaram ao esgotamento da geração Z. De acordo com o portal, essa geração que ingressa no mundo adulto já imersa em ambientes digitais multifuncionais, encontra-se submetida a uma lógica de conectividade contínua. Trabalho, estudo e vida pessoal compartilham os mesmos dispositivos, notificações e horários fluidos. A ausência de fronteiras entre os domínios da vida cria um tipo de carga mental constante, marcada não apenas por sobrecarga de tarefas, mas por uma vigilância permanente — externa, pelo olhar das redes, e interna, por padrões de autoexigência que muitas vezes são inatingíveis.

Redes sociais são vetores de comparação incessante

As redes sociais, nesse contexto, funcionam como vetores de comparação incessante. A exposição a estilos de vida idealizados alimenta um sentimento crônico de insuficiência, agravado pelo fato de que essa comparação raramente se dá em condições equivalentes. Estudos publicados no Frontiers in Public Health indicam que tanto as comparações ascendentes (com indivíduos percebidos como mais bem-sucedidos) quanto as descendentes (com os considerados em situações piores) contribuem para o esgotamento emocional. 

Somam-se a isso outros fatores estruturais: a insatisfação com ambientes de trabalho que não dialogam com as expectativas de propósito, diversidade e equilíbrio; o acúmulo de funções mal definidas em contextos de trabalho remoto; e a internalização de uma cultura de “alta performance” que transforma o tempo livre em fonte de culpa. Trata-se de uma geração que, muitas vezes, se sente obrigada a alcançar antes mesmo de se estabelecer — e que vivencia o burnout não como desvio, mas como regra.

Pandemia de Covid-19 foi agravante no quadro de saúde mental dos mais jovens

O impacto da pandemia de Covid-19 acentuou ainda mais esse quadro. A Geração Z foi particularmente afetada pelo isolamento social e pela suspensão de experiências formativas durante uma fase considerada sensível para o desenvolvimento socioemocional. Em vez de criar vínculos, formar redes e transitar por rituais de entrada no mundo adulto, muitos jovens se viram restritos ao convívio remoto, privados da convivência escolar e da socialização expandida. Segundo artigo publicado pela Forbes e dados da Biblioteca Nacional de Medicina, os efeitos desse distanciamento prolongado tendem a ser mais persistentes nesse grupo do que em outras gerações. 

Ruptura no ingresso da Geração Z no mercado de trabalho

Essa ruptura também teve reflexos na forma como a Geração Z entrou no mercado de trabalho. Muitos passaram a ocupar seus primeiros cargos em regime remoto, sem a mediação presencial de colegas mais experientes ou estruturas que promovem o aprendizado informal — um processo que costuma ser decisivo nos anos iniciais da carreira. Eles também convivem com a incerteza econômica, a instabilidade de vínculos e a dificuldade de projetar o futuro com clareza. Essa combinação de fatores tem produzido não apenas sobrecarga emocional, mas também novos padrões de consumo e expectativas sobre os serviços com os quais se relacionam.

Como tudo isso se reflete no campo dos seguros? 

No campo dos seguros, todas essas questões se traduzem em mudanças importantes. A Geração Z, ao contrário das gerações anteriores, não se orienta prioritariamente por planos de longo prazo ou estruturas rígidas. O que buscam são soluções ajustáveis à sua realidade: produtos flexíveis, digitais e com prazos que acompanhem seus ciclos de vida mais curtos e menos previsíveis. Além disso, esse grupo espera serviços integrados a plataformas digitais, com acesso rápido, navegação intuitiva e comunicação ágil — características que têm pressionado o setor a acelerar seus processos de automação e adoção de tecnologias como inteligência artificial.

Para a população idosa,a solidão é um fator de risco com repercussões múltiplas e abrangentes

Na outra extremidade do recorte geracional, os dados também revelam impactos específicos sobre a população idosa. O aumento da expectativa de vida no Brasil — que hoje ultrapassa os 76 anos — está acompanhado por uma transformação demográfica expressiva: em 2000, os idosos representavam 8,7% da população; em 2023, esse número chegou a 15,6%; e a projeção para 2070 é que quase 38% dos brasileiros tenham mais de 60 anos, segundo o IBGE.  Esses números, embora expressem um avanço em termos de longevidade, impõem novos desafios relacionados à qualidade de vida na velhice. Entre eles, a solidão tem se destacado como um fator de risco com repercussões abrangentes. Uma pesquisa da Unicamp, publicada nos “Cadernos de Saúde Pública”, mostrou que 17% dos idosos relataram sentir-se sempre sozinhos, enquanto 31,7% afirmaram vivenciar esse sentimento com alguma frequência. 

Associação direta da solidão crônica ao declínio cognitivo e ao aumento do risco de demência

Os dados mencionados merecem atenção não apenas pelo seu peso numérico, mas pela complexidade das situações que o originam: perdas familiares, aposentadoria, redução da mobilidade e afastamento de espaços de convívio são elementos que, combinados, tendem a enfraquecer os vínculos afetivos e sociais que sustentam o bem-estar emocional.

Como destacou Naira Dutra Lemos, professora da Unifesp e presidente do Departamento de Gerontologia da SBGG, a solidão na velhice pode provocar uma série de impactos: sentimentos de inutilidade, ansiedade, distúrbios do sono, sedentarismo e até agravamento de condições cardiovasculares. A especialista explica que há uma associação direta da solidão crônica ao declínio cognitivo e ao aumento do risco de demência, compondo um quadro em que a ausência de redes de suporte funciona como acelerador do adoecimento.

O envelhecimento da população e os seguros

Do ponto de vista do setor de seguros, esse fenômeno também exige um redimensionamento. A tendência de envelhecimento da população, combinada aos efeitos da solidão, implica repensar coberturas, formatos de atendimento e formas de acolhimento. Iniciativas de telemedicina, linhas de apoio emocional remoto e programas de saúde preventiva voltados à terceira idade têm se mostrado estratégias relevantes para mitigar os efeitos do isolamento, sobretudo em contextos urbanos e entre idosos com limitações de mobilidade.

O denominador comum entre as gerações é o desgaste emocional como resultado de um mundo hiperconectado

O que os dados mostram, ao serem interpretados em conjunto com variáveis como faixa etária, contexto socioeconômico e padrões de vida digital, é a complexidade do sofrimento psíquico em um tempo hiperconectado. Tanto entre os jovens, expostos a ciclos de comparação social e exaustão precoce, quanto entre os idosos, afetados pela dissolução de redes presenciais e pela solidão estrutural, há um denominador comum: o desgaste emocional como resultado de modelos de vida que desconsideram limites — sejam eles físicos, emocionais ou relacionais.

As seguradoras precisam reconhecer e enfrentar as formas contemporâneas de desgaste — e isso começa pelo que os dados, quando bem interpretados, têm a dizer

Nessa situação,as seguradoras enfrentam a necessidade de revisar suas estratégias de cobertura e relacionamento diante do avanço das demandas ligadas à saúde mental.  O cuidado com a saúde mental, antes visto como uma extensão periférica das coberturas, tende a se consolidar como uma das áreas centrais de atuação. Isso implica desenvolver produtos que respeitem os tempos de cada geração, ampliar canais de acolhimento acessíveis e utilizar a tecnologia não apenas para agilizar processos, mas para promover vínculos — ainda que mediados por telas. A interpretação qualificada dos dados de sinistro deixa de ser apenas uma ferramenta de precificação de risco e passa a ocupar o centro de um projeto mais amplo de proteção. Um projeto que, diante da fragmentação das relações e da sobrecarga psíquica de diferentes grupos, precisa combinar precisão técnica com sensibilidade social. Isso porque mais do que mapear doenças, o desafio agora é reconhecer e enfrentar as formas contemporâneas de desgaste — e isso começa pelo que os dados, quando bem interpretados, têm a dizer.

Postado em
14/4/2025
 na categoria
Inovação

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